IDI
AMIN
“Andorinha, andorinha, minha cantiga é
mais triste!Passei a vida à toa, à toa...”
(Manuel Bandeira)
Imagine alguém ficar 27
anos sem ter contato com outro ser da mesma espécie e não poder se comunicar.
Imagine alguém existir 27 anos assim: um nada, um ninguém, um solitário, uma
sombra no caminho de si mesmo. Imagine se alguém pode ser feliz em um estado de
solidão extrema, sem outra voz, sem outro som, sem o cheiro de outro, sem o
gesto, sem o toque do carinho em qualquer nível que seja. E, sem ter o que
expressar, no vazio de uma mudez forçada, ser incapaz de descobrir as relações das
ações coletivas.
Pois essa criatura
existe: condenado ao exílio do convívio de seus semelhantes pelos homens de
bem, o gorila Idi Amin, do Jardim Zoológico de Belo Horizonte, está há 27 anos
em sua jaula, sem companhia. 27 anos sem moradia própria, sem um espaço seu. 27
anos sendo alvo de chacotas: “Olha, mamãe, ele não faz nada, só fica olhando.” Quer
dizer: os homens, seres perfeitos e de poder inigualável, deram-lhe esse triste
sedentarismo. Impediram-no de constituir família, namorar, brigar, envolver-se.
Tiraram-lhe parceiros. Empobreceram-lhe a existência. Magoaram-no. Calaram-lhe
uivos. Privaram-no de sua dignidade. Saquearam-lhe a maior riqueza que um ser
pode ter, que é a de se manter ao lado de outro da mesma espécie, de mesma
consistência emocional. Trituraram-lhe o prazer mínimo de andar sob o mesmo sol
com o grupo a que deveria pertencer por condições normais de vida. Resumidamente:
roubaram-lhe toda a vida que deveria ter e a que tinha direito de ter.
Ouvi dizer que,
finalmente, Idi Amin terá a companhia de duas fêmeas trazidas não sei de onde.
Querem compensá-lo pelas perdas, talvez. Querem se desculpar, talvez, como se o
tempo passado e perdido pudesse voltar atrás. Talvez, queiram-lhe devolver o
que lhe sequestraram. Mas, depois de 27 anos, fazendo do silêncio seu discurso
diário, não sei se Idi Amin tem mais discernimento apropriado para a oratória.
Não sei se ele, promovido durante tantos anos a ser um zero à esquerda, vê mais
importância em alguma coisa que não seja se calar – fazer do silêncio uma forma
de protesto contra os homens. Talvez, silenciosamente, queira agora fazer uma
homenagem ao vento, fiel companheiro que, por toda a vida, foi-lhe o único
escudeiro a lhe tocar o rosto.
E entre nós, olhando de
frente a forma como tratamos os animais e nossos idosos, não dá para não
comparar um jardim zoológico com um asilo onde encontramos pessoas abandonadas.
Tanto em um quanto em outro lugar, os que ali permanecem estão condenados ao
degredo de seu lar, lugar onde deveriam acontecer seus melhores momentos de
vida: um por ser arrancado de seu habitat; outro, por ser banido de sua própria
moradia.
Olhando-se asilos e
jardins zoológicos, dá para imaginar quantos idi amins, donas marias, seus
joões existem por aí, em forma de gorilas, pássaros, elefantes, tigres...
pessoas. Dá para compreender o porquê de os zoológicos, tanto quanto os asilos,
não serem lugares de descanso, alegria, nem de paz. Ao contrário, representam
um sinal de brutal covardia.
Obs.: Refletindo sobre essa
situação, e assistindo à nova versão cinematográfica de O Planeta dos Macacos, não
há como não ter aquela ideia sofrida e magoada de que o mundo talvez fosse melhor,
se eles realmente conquistassem o mundo. Não podemos deixar de ter o pensamento
de que, talvez, fosse muito mais útil se os símios dessem uma banana aos
humanos e recomeçassem tudo de novo.
O BEIJO É NOSSA BÚSSOLA
Entre tantas maneiras de
demonstrar carinho, o beijo talvez seja a que mais nos permite refletir sobre
quem amamos e, consequentemente, reconhecer nossa correspondência de amor.
Talvez nem o sexo possa nos dar este prazer.
O sexo se concentra tão
intensamente em seu ponto de encontro, que é difícil administrá-lo em uma
relação, que é quase impossível nos ater ao que está fora de si e de sua
atitude desesperada de se realizar. É tão imperioso, que se pode praticá-lo sem
amor. Pode-se tê-lo em sua conduta tirânica, mesmo sabendo que o outro não se
entrega, que o outro não alça voo em nosso espaço aéreo (O que importa o que o
outro sente, se o que o nosso sexo pede nos aliena em sua concentração de
usança?).
O beijo, por seu lado,
leva-nos a perscrutar o mundo íntimo do ser amado. Permite-nos viajar com nossa
parceria. Beijar deliciosamente, sem pressa, e sem a fome urgente de amar,
fomenta uma afável energia que nos dá força suficiente para nos apegar à pessoa
que conosco reparte sua aura de afabilidade.
É porque o beijo nos
permite pensar durante seu ato. E em cada intervalo entre um beijo e outro,
podemos sondar os olhos de quem está conosco e sentir o que eles nos
representam. Ele é um abraço amigo entre os lábios e, como tal aconchego,
prende-nos pela carícia absolutamente leve do contato, e não se concretiza sem
a correspondência unívoca dos lábios de quem se ama. Por isso, podemos, por
ele, celebrar a verdade das palavras, aquilo que, antes de seu ato, gira em
torno das suspeitas. Com ele, legitimamos a pompa cerimoniosa que o amor merece
em sua grandeza. Podemos beijar também sem amor, mas, por sua postura
circunspecta, ele nos deixa livres para recuar em seu momento de
realização.
Enfim, beijar sem
estratégias de sedução, ao mesmo tempo que sem mecanismos de defesa, significa
ter nas mãos (ou nos lábios) laços que nos indicam o rumo exato do amor em sua
grandeza.
MULHERES MADURAS
A
despeito do tempo que urge em sua fome costumeira, ruga nenhuma é capaz de
destruir o que uma mulher constrói durante sua vida.
A idade de uma mulher não
descaracteriza sua conduta. Não diminui sua brancura nem sua brandura. Não
descolore seu caráter. Não desarruma seus cabelos. Não apaga seu sorriso. Não
desfaz seu estilo.
Quem a acompanha em seu
amadurecimento sabe disso. Cada momento com ela vai modificando sua relação com
os procedimentos de sua vida. Evoluímos numa mesma velocidade, num mesmo lapso
de tempo, assimilando as mesmas vivências e intimidades. É assim que vemos a
mulher sempre com os olhos de quem contempla uma novidade, pois a idade avança
e a temos como parte de nosso mundo que, a cada instante, amplia-se com ela e
por ela. Ela se torna peça de nosso mecanismo de funcionamento.
As rugas são os fios que ligam o
presente e o passado. Se estes fios trançam a textura fria da velhice, o que se
aprende e se amadurece durante toda a tecedura da vida a dois é o que nos
amortece o incômodo ônus da idade, é o que nos faz conservar o êxtase ainda que
diante do inevitável desmanche da aparência.
Por isso, a doçura de amar a
mulher madura permanece. Em consequência disto, sua voz enfraquece, mas as
palavras que dela decorrem se prolongam. Seus lábios ressecam, mas o sorriso
vem da alma, e, se a felicidade existe, ele satisfaz tanto que é capaz de curar
nossos mais enigmáticos traumas. Seus cabelos embranquecem, mas seu caráter não
descolore.
Assim, todas as mulheres, em
qualquer idade, dá-nos tesão, tensão e serenidade. Garotos e jovens não as
podem distinguir desta forma porque não conseguem visualizar em sua silueta
madura aquilo que elas vivem internamente como ser humano. Homens de mais idade
podem senti-las em sua integridade física e moral porque as admiram com olhos
iguais, porque as apreciam com olhos criteriosos como os delas.
E podemos amá-las também como
“gostosas”, “fofinhas”, “morzinhos”, “docinhos”, “gatas selvagens”, seja lá a
denominação com que nossa intimidade permita nomeá-las. É claro que poucos
homens o fazem pela inobservância de amar, mas, aí, o problema não é com elas.